domingo, 21 de outubro de 2012

VELHO


 Ele era velho no real sentido da palavra. Seu corpo, cansado no alto dos seus oitenta e poucos anos, quase que totalmente alquebrado, já não o ajudava mais em nada. As cãs brancas e os fios que ainda restavam, emolduravam um rosto pequeno, com muitas rugas, principalmente nos cantos dos olhos e da boca. Não havia mais vivacidade alguma que pudesse ser percebida nele; todo o viço, vigor e altivez de outrora se esconderam em algum lugar tão distante, de modo que se tornaram impossíveis para esse velho homem tentar reencontrá-los.

Vivera num tempo em que os homens fechavam contratos arrancando um fio do bigode e entregando a outra parte, esse ritual os obrigava, em função do chamado brio, cumprir integralmente o acordado. Não havia desculpas possíveis a serem inventadas para remediar algum percalço durante a validade do acordo, tudo era feito dentro da hombridade. Nessa época, também aprendera com seu pai que um verdadeiro homem sempre está à frente da família. Todos deveriam ter certeza de que o pai era capaz de solucionar qualquer entrevero. Às mulheres cabia a condução da casa e criação dos filhos, que, mesmo sendo acompanhados pelas mães, era em seus pais, homens de verdade, que se espelhavam.

Agora sentado na velha cadeira de balanço que pertencera a seu avô, no alpendre da casa que seu pai construíra assim que chegara à cidade, vindo das fazendas de café, onde trabalhara desde a emigração da Itália, olha para a rua buscando nas pessoas apressadas em seus carros, algum sentido para continuar vivendo preso em um corpo que já não pode mais acompanhá-lo.

Celina, a mocinha que seu filho havia contratado para cuidar dele e da casa, chega trazendo numa bandeja surrada um copo de suco de graviola. Ela comenta com Seu Atanásio, - aliás, este era seu nome, e fora escolhido por sua mãe para homenagear um primo que morrera na guerra - que a tarde estava muito quente e seca e ele não podia ficar sem beber líquido. Seu Atanásio pega o copo e fica olhando a mocinha caminhar de volta para a cozinha. Seu andar forte e cadenciado fez com que a saia do vestido de algodão, mesmo sendo extremamente rústico, se prendesse a pele moldando seu belo corpo.

Há muito que a libido abandonara Seu Atanásio, não o desejo, mas a tão adorada ereção, que outrora lhe valera em tantas aventuras, esta há séculos não dava o ar da graça.

Vendo essa moleca com seus vinte e poucos anos percebeu-se excitado. Lembrou-se que, quando rapazote, seu pai o levou a casa de Dona Santa, “mulher perdida”, como falava as senhoras de família. Lá o então pequeno Nizo, como era chamado por seu pai, com idade que nem lembro mais, conheceu o corpo feminino. Como achou belo, suave, macio e perfumado. Suas covas traziam um aroma e o faziam sonhar em nunca mais sair dali. Perdido nos braços solícitos e indulgentes chegava a crer, por um átimo de tempo, ser este o tão falado paraíso. Mas daqui a pouco volto a falar daquela época. Isso se eu não me esquecer, pois, no momento seu Atanásio precisava aproveitar o favor que a natureza lhe concedia novamente: a oportunidade de se perceber vivo, de saber que ainda caminhava na terra dos homens.

Levantou-se e foi andando com seus pequenos passos em direção à janela que ficava no fim do alpendre, onde poderia olhar para dentro da cozinha. Lá estava ela, Celina, cuidando de seus afazeres. Preparava o jantar, andava apressadamente entre panelas e víveres, tão absorta em seu trabalho que não percebeu o olhar fixo de Seu Atanásio.

Celina trabalhava muito. Desde que chegara a casa percebeu que sua carga de trabalho seria grande. Sua história era como a de muitas outras: família pobre do interior, sem condições de manter todos, acabava empurrando os filhos para a cidade grande em busca de melhora. Celina não tinha preguiça de nada: cuidava de toda casa que era muito grande e cheia de quartos que, na maior parte do tempo, estavam vazios, e só eram ocupados quando um ou outro filho de Seu Atanásio vinha visitá-lo. Seu Patrocínio, quem a tinha contratado, há coisa de semana não aparecia, ela precisava avisar que a dispensa estava quase vazia e os remédios tinham que ser aviados, lavava todas as roupas, passava e, logicamente, cozinhava.

O dia-a-dia era longo e cansativo, mas ela não reclamava. A parte que mais lhe agradava era cuidar de Seu Atanásio, homem bem velho, mas muito respeitador. Lhe parecia que quando jovem Seu Atanásio deveria ser o que as moças de antigamente chamavam de “pão”, pois, para ela, o rosto de seu Atanásio trazia a beleza da experiência. Não era daqueles que ficavam na praça jogando damas e mexendo com as empregadas; não, ele era bom, calmo e obedecia quando dizia que tinha tomar os remédios, ou na hora de sair daquela cadeira ao anoitecer, para não pegar friagem. Vocês sabem, gente idosa pega gripe muito fácil e para curar dá muito trabalho.

 Mas Celina tinha uma tristeza que ninguém sabia: gostaria muito de estudar, aprender ler e escrever e, assim, poder sonhar com algo melhor. No interior não há tempo para isso, a lida diária no campo é fatigante, roça, gado, são obrigações que as crianças conhecem desde muito novos.

Seu Atanásio continuava a janela observando cada passo da moleca, e a cada momento que se passava percebia-se mais excitado. Nada fazia a não ser olhar. Preenchia seu imaginário com lembranças da belle époque. Nesse universo ele podia fazer tudo, adentrar aquele cômodo com rapidez e sofreguidão, abraçá-la e possuí-la em cima da mesa, falar as palavras obscenas que aprendera na casa de dona Santa ao ouvido da moça, e se mover com o cuidado de não ser o primeiro a se satisfazer, mas com força suficiente para fazê-la atingir o ápice.

Nesse momento, Seu Atanásio se percebe molhado. Olha para a calça e nota que mesmo sem ter tocado seu velho corpo, não conseguiu esperar pela moça. Esvaíra seus sucos da luxúria sem nem ao menos perceber o exato momento de seu próprio gozo.

Uma profunda tristeza se abateu sobre ele. Lágrimas começaram a rolar por seu rosto, ato contínuo virou-se andando de volta para a velha cadeira. Chorava agora copiosamente lágrimas grossas e pesadas, molhavam sua camisa e pingavam no assoalho encerado. Sentia-se agora com o dobro da idade, a angústia consumia-lhe o peito, apertava de forma tão violenta o coração que doía a alma.

Seu Atanásio chegou à cadeira de balanço e deixou-se cair pesadamente. O calor do fim de tarde já não mais o incomodava, a artrite e a artrose que todos os dias lhe consumiam a minguada força, pareceu-lhe uma unha quebrada.

Não lhe restava mais nada na vida. O pequeno favor que a natureza lhe concedeu, de forma abrupta retomou e não lhe permitiu sentir mais uma única vez o tremor do desejo realizado, nem o prazer do fogo amainado.

O choro que a pouco o consumia, começou a perder força, aliás, tudo começou a se esvair. Estava muito cansado; cansado de viver, de tomar banho sentado, de tomar chá de erva cidreira. Não queria mais lutar, não queria mais lembrar e nem mesmo respirar.

E, como que por sua própria vontade, parou de respirar e morreu.

Celina ultimava o jantar quando veio acordar seu Atanásio para tomar banho. A princípio o chamou várias vezes sem obter resposta. Começou a se preocupar, Seu Atanásio não se mexia. Foi quando pegou em seu pulso da forma como seu Patrocínio a ensinara. Percebeu que não batia e começou a chorar desesperadamente, não porque provavelmente ficaria desempregada, ou sem ter para onde ir, mas porque gostava de seu Atanásio, gostava realmente dele, não se importava com a sua idade, com seu corpo frágil, sua voz fraca, gostava dele e não sabia se por ter nele um homem ou um porto seguro.

Notou, então, que suas calças estavam molhadas. Com muito esforço empurrou a cadeira para dentro da casa e decidiu trocar-lhe as roupas. Vestiu-lhe com uma calça marrom que ela gostava e uma camisa branca de linho. Somente então se permitiu chamar os parentes, não queria e nem jamais deixaria que um filho de seu Atanásio visse que ele havia urinado (supôs ela) na própria roupa em sua hora final. Devia-lhe isto, como se fosse um último favor, ela devia-lhe ao menos um pouco de dignidade.

19/07/2007.

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